No final do último texto, lembramos que Tomás começa sua resposta sintetizadora dizendo que a inteligência dos anjos está para a inteligência humana como os corpos celestes estão para os corpos terrestres, e seria por isto que o Pseudo-Dionísio costumava se referir aos anjos como “inteligências celestes”.

De fato, como dizíamos ali, Tomás usa de uma analogia com a astrofísica que era corrente no seu tempo. Por isto, esta analogia soa anacrônica para nós. E explicávamos que isto ocorre porque São tomás respeitava a ciência do seu tempo, que estava naquele grau de desenvolvimento. A ciência astronômica do seu tempo considerava que as coisas terrestres eram compostas de potência e ato, e por isto seriam, a um só tempo, corruptíveis e aperfeiçoáveis. Os corpos celestes, na sua experiência de conhecimento, eram aparentemente uniformes, estáveis, imutáveis e incorruptíveis. Assim, acreditava-se que eles eram completamente atuais, acabados, realizados, perfeitos em todas as possibilidades. Sabemos hoje que não é assim, e que há uma uniformidade entre a composição dos corpos terrestres e celestes. Por isto, esta analogia não vale para nós. Mas, mesmo que a analogia não valha, a realidade que Tomás tenta ilustrar com ela existe, e é válida. Uma inteligência espiritual, puramente imaterial, subsistente como puro espírito, necessariamente funciona de modo diferente da nossa. Não está sujeita ao conhecimento experimental, nem à descoberta progressiva do universo à sua volta. Não depende da lógica para alcançar todas as consequências do seu conhecimento, nem se organiza ou se exprime de modo discursivo. Conhece intuitivamente a species e tudo o que a envolve, é capaz de esgotar o conhecimento de um só olhar, sem raciocínios. Ou seja, o intelecto dos anjos, por subsistir imaterialmente, não pode ser uma tabula rasa, como o nosso. Ao conhecer, conhece tudo o que há para conhecer daquela realidade, desce os princípios até suas consequências mais remotas, num só e mesmo ato. Não há espaço para discursos, raciocínios ou silogismos, induções ou deduções, no conhecimento angélico. Em certo sentido, poderíamos acrescentar, isto traz como consequência o fato de que os anjos não podem experimentar o arrependimento e a conversão. Suas decisões, como veremos quando estudarmos a vontade dos anjos, são completas, definitivas e irremediáveis. Porque, como sua inteligência não é processual como a nossa, não há espaço para mudança em suas decisões.

Assim, do mesmo modo que nós inteligimos os princípios sem necessidade de um caminho de raciocínio (ninguém precisa raciocinar para intuir que se duas coisas são iguais a uma terceira, também são iguais entre si, por exemplo), os anjos conhecem os princípios e tudo o que deles pode decorrer sem necessidade de raciocínio. Seu conhecimento é completo e imediato, sobre todas as realidades naturais que conhecem.

Assim, nosso intelecto precisa de um caminho, de esforço, de formar conceitos, juízos e raciocínios para chegar a conhecer todos os aspectos, todas as consequências daquilo que conhecemos. Somos discursivos, raciocinantes, linguísticos, em nosso intelecto. Os anjos não são assim. São intuitivos, são plenos na sua capacidade de conhecer não discursivamente aquilo que conhecem.

É neste sentido que podemos dizer que os anjos são inteligentes, não podemos chamar seu modo de conhecer de raciocínio; nós, humanos, raciocinamos. Os anjos simplesmente sabem. Raciocinar é um meio fraco de conhecer. Inteligir como os anjos é saber de um jeito forte.

Havendo lançado assim os fundamentos para lidar com o debate, São Tomás passa a revisitar os argumentos objetores iniciais.

O primeiro argumento diz que é próprio do conhecimento raciocinante conhecer alguma coisa a partir do conhecimento de outra. Ora, prossegue o argumento, os anjos bem-aventurados conhecem todas as coisas pelo Verbo de Deus. Logo, se conhecem uma coisa a partir de outra, é porque raciocinam, conclui.

Não é assim, diz Tomás. O raciocínio, como discurso de razão, pressupõe um processo, um conhecimento progressivo, que caminha de uma coisa conhecida para chegar em outra que, a princípio, não era evidente. Mas quando as coisas são vistas simultaneamente, ainda que uma seja vista pela outra, não há raciocínio, mas apreensão imediata. O exemplo, aqui, é a de alguém que vê um rosto num espelho: com um só e mesmo olhar ele apreende o rosto e o espelho. Ou seja, apesar de ver uma coisa através da outra, não há, aqui, nenhum raciocínio ou discurso. É análogo ao caso do anjo que conhece através do Verbo.

O segundo argumento diz que tudo o que um poder inferior pode, o poder superior pode também. Ora, diz o argumento, se a inteligência humana, que é inferior à do anjo, pode raciocinar, silogizar, discorrer, também o anjo o pode, com maior razão.

Sim, os anjos podem valer-se do raciocínio, diz Tomás. Eles podem construir silogismos, argumentar, discursar das causas aos efeitos e vice-versa. Mas isto não significa que seja o raciocínio que leve o anjo a novos conhecimentos; eles não precisam do raciocínio para conhecer, para descobrir. Ao contemplar as causas, já contemplam nelas os efeitos, e vice-versa. O discurso, para eles, tem um valor apenas instrumental, por exemplo, para comunicar-se conosco a nosso modo.

Por fim, a terceira objeção cita São Isidoro. Para ele, os demônios chegam a conhecer muitas coisas através da experiência. Ora, prossegue o argumento, o conhecimento pela experiência envolve a experimentação e o raciocínio lógico, já que, como diz Aristóteles, o acúmulo de memórias sobre as coisas experimentadas resulta em experiência sobre determinado objeto, e a experiência gera o conhecimento universal do objeto. Assim, o argumento conclui que conhecer pelo raciocínio é um atributo dos anjos.

Não se vai negar, diz Tomás, que os anjos e os demônios como que entram em relação com as coisas presentes, que sofrem a ingerência do tempo, e de certo modo, por analogia, pode-se falar que eles as experimentam, no sentido de que são capazes de acompanhar suas mudanças históricas. Mas isto não significa que eles dependam de algum tipo de raciocínio para conhecê-las.