O problema de saber se as coisas saíram prontas e finalizadas das mãos de Deus, ou se a criação passou por uma fase de matéria informe, para depois dar origem, sucessivamente, às coisas individuais especificadas, era um problema realmente filosófico e teológico, no tempo de Tomás.

Por um lado, havia a narração bíblica da criação, ou melhor, as narrações, que envolviam a sucessão dos seis dias, a criação de Adão e Eva e a declaração, em João 1, 1, que Jesus seria o logos, a razão pela qual tudo existe. Além disso, a concepção de que Deus é perfeito e todo-poderoso não parece casar bem com uma ideia progressiva da criação, e o próprio Aristóteles não admitia a existência de matéria-prima sem a respectiva forma. Tudo isto não parecia conduzir a uma conclusão segura para um lado ou para outro: tudo saiu instantaneamente formado das mãos de Deus, ou houve alguma progressividade neste processo?

Nosso paradigma científico, hoje, estabelece uma progressividade na formação do universo, com dados empíricos que Tomás não tinha. Mas, como todo bom paradigma científico, embora robusto, sempre traz em si alguma possibilidade de superação. Em todo caso, é muito interessante perceber que Tomás, em sua resposta, mantém o caso aberto para ambas as possibilidades. Passaremos a examinar a resposta sintetizadora dele.

Tomás registra que há diversas opiniões, a respeito deste tema, entre os Santos Padres da Igreja. Santo Agostinho, por exemplo, entende que a matéria não precedeu cronologicamente a formação das coisas, mas apenas logicamente: a criação das coisas materiais pressupõe a matéria, mas não a sua preexistência cronológica. Mas outros Santos Padres, igualmente respeitáveis, como São Basílio, Santo Ambrósio e São Crisóstomo, entendiam que, na criação, primeiro houve a existência da matéria informe, para depois haver a própria formação das coisas.

Tomás, então, vai dizer que, no fundo, há pouca diferença entre as duas opiniões, se as entendermos corretamente. E, mais uma vez, vai nos fornecer uma aula excelente sobre a estrutura metafísica da realidade, que nos permitirá abordar com mais critério este assunto, sem excluir, é claro, as descobertas empíricas da ciência.

A matéria-prima, diz Tomás, é algo completamente sem forma; não há, nela, conceitualmente, nenhuma estrutura que permitisse alguma inteligibilidade. Mas, como Agostinho bem ressalta, a submissão a uma passagem de tempo já é, de alguma maneira, uma estrutura: ou seja, se a matéria-prima pode submeter-se ao tempo, então ela já tem alguma forma, que a insere na história dos acontecimentos. De fato, diz Tomás, o tempo não é algo externo à criação. Ele é um dos elementos criados, e portanto tem lugar apenas no interior da própria criação. Assim, se houver uma matéria informe, completamente informe, ela não pode estar submetida ao tempo. Porque, para estar submetida ao tempo, ela precisaria ter alguma composição, ou seja, alguma forma agregada à matéria, e portanto já não seria matéria-prima. Porque, para existir historicamente, ela tem que ter duração, e para ter duração ela precisa ser mensurável, e para ser mensurável ela precisa ter alguma forma, ainda que muito simples.

Assim, diz Tomás, seria ilógico admitir a existência, no tempo, da matéria-prima simples, absolutamente informe. Neste passo, Agostinho está com a razão, diz ele. Este raciocínio tem enorme relevância em nosso tempo, em que a física de vanguarda procura pela partícula fundamental do universo: se esta partícula, conceitualmente, é realmente fundamental, ela não pode ser feita de outra coisa, mas tem que ser aquilo de que todas as outras coisas são feitas. Mas, se ela não é feita de nenhuma outra coisa além dela mesma, então ela não pode ter nenhuma determinação, e portanto não pode estar inserida no espaço-tempo. Esta conclusão parece adequar-se ao raciocínio filosófico de Tomás no presente artigo.

Tomás não quer admitir, por outro lado, que, nos primeiros instantes da criação, havia um tipo de “matéria comum”, que depois se diversificou dando origem às diversas coisas que existem. Ele lembra que esta era a teoria dos antigos filósofos gregos, pré-socráticos, que consideravam que todas as coisas que existem eram feitas de alguma substância fundamental. Alguns, como Tales de Mileto, achavam que era a água; outros, com Heráclito, opinavam que era o fogo, ou algo indeterminado, como Anaximandro.

Mas, neste caso, diz Tomás, haveria apenas uma substância no universo, e todas as outras coisas seriam apenas formas acidentais. Assim, por exemplo, tomemos apenas uma das chamadas “substâncias fundamentais” como exemplo: a água. Como a água pode se apresentar acidentalmente como vapor, líquido ou gelo, ela poderia se apresentar acidentalmente como pedra, planeta ou animal. Mas no fundo haveria apenas água, e toda transformação, toda interação, seria apenas a reformulação da água. Neste caso, diz Tomás, não haveria geração ou corrupção de nada, mas apenas a alteração da água em diversos estados que dariam origem a tudo o que existe, e tudo seria apenas algum “estado de organização” da água. Ou do fogo. Ou do apeiron ou mesmo da tabela periódica inteira. As partículas simplesmente não podem ser as únicas formas substanciais do universo, que se reorganizam acidentalmente formando tudo. As formas superiores têm que existir substancialmente, com sua própria inteligibilidade, e não apenas acidentalmente. Porque a geração e a destruição de fato existem. Assim, para que alguma matéria adquira alguma nova forma substancial, ela precisa perder a forma substancial anterior, adquirindo uma nova forma substancial. De modo análogo àquele pelo qual o tijolo, depois de incorporado na parede da casa, não é mais tijolo, mas torna-se um com a casa. (este exemplo é limitado, porque tanto o tijolo quanto a casa são artefatos, e portanto formas acidentais. Mas trata-se apenas de um exemplo didático).

Assim, diz Tomás, não podemos admitir, nem conceitualmente, que a matéria-prima tenha existido em algum momento sem nenhuma forma, ou mesmo com alguma forma comum, indeterminada, que ela não precisasse perder quando surgissem as formas superiores. Por isto, se houve formas mais simples no começo da criação, que vieram a originar, depois, formas mais complexas, estas formas foram substancialmente destruídas no processo, e geradas as novas formas de modo igualmente substancial. Assim, diríamos, mesmo que a mesma matéria-prima que esteve, digamos, numa porção de hidrogênio no início da criação, esteja hoje compondo um átomo de carbono num corpo biológico como uma complexa molécula orgânica, não se trata mais da mesma forma que havia no princípio, mas aquela forma, consumida, digamos, na fornalha de uma estrela, desfez-se e deu origem a uma nova forma substancial. Aquilo que Tomás avaliou filosoficamente com a ciência do seu tempo parece permanecer válido ainda para a ciência de hoje, guardados os devidos cuidados; pelo menos quanto aos princípios gerais.

Neste sentido, não poderia ter existido algum período de tempo em que a matéria-prima existisse por si mesma, sem forma, nem sequer sob alguma forma comum que viesse a alterar-se acidentalmente, compondo outras coisas, sem corrupção e geração. Neste sentido, diz Tomás, Santo Agostinho estava certo: a matéria-prima é pleiteada como pressuposto lógico da estrutura das coisas; mas ela não pode existir na história, efetivamente, sem estar incorporada em alguma coisa. Ela é anterior à coisa, no mesmo sentido em que a potência é anterior ao ato, mas não no sentido cronológico.

Outros Santos Padres, prossegue Tomás, defendem que, no início da criação, havia de fato a matéria, mas não como matéria-prima, senão como dotada de algumas formas simples, que não constituíam as coisas tais como as conhecemos hoje, mas apenas coisas muito simples desprovidas de complexidade e beleza; estas massas materiais iniciais foram sofrendo sucessivos processos de transformação e recombinação que deram origem às coisas que temos hoje, com a complexidade que agora apresentam. Tomás diz que Santo Agostinho concorda com esta posição, com ressalvas, como veremos adiante.

Por fim, Tomás vai terminar sua resposta fazendo uma exegese do primeiro relato de criação do Gênesis.

O problema encontra-se na passagem de Gênesis 1, 2, em que as escrituras afirmam que a criação era “vazia e sem forma”. Para Tomás, havia uma necessidade de harmonizar este dado bíblico, quer com sua filosofia de base, quer com a ciência do seu tempo.

Tomás vai interpretar, portanto, que esta expressão quer preparar todo o relato posterior, no qual Deus concede uma tríplice beleza à criação. Ou seja, trata-se de apresentar a criação como que preparando-se para receber, das mãos de Deus, um tríplice embelezamento que vai deixá-la muito boa, ao final.

O primeiro embelezamento é do céu. De fato, o céu recebe, em seguida, de Deus, a luz, que o torna radiante; isto é significado na passagem em que se diz que “as trevas estavam sobre a face do abismo” (1, 2b), e em seguida Deus pronuncia a luz, criando-a, em 1, 3 (“e Deus disse: faça-se a luz, e a luz se fez”) embelezando o céu e afastando as trevas.

Mas também a terra precisava receber seu embelezamento. São duas as obras de embelezamento da Terra, que a retiram desta incompletude inicial que a deixam informe.

A primeira obra de embelezamento da Terra é a palavra de Deus que separa as águas e permite que a terra seca venha a mostrar-se (1, 9). A terra pode, assim, adquirir a ordem e a magnificência que permitirá a segunda obra de embelezamento da Terra, que é orná-la de vida vegetal em abundância (1, 12). Assim, a primeira obra de embelezamento é a luminosidade do céu, a segunda é o surgimento da terra firme e a terceira, orná-la com as plantas e toda a vida vegetal exuberante.

É por isto que se fala, aqui, de um céu que se apresenta como um abismo de escuridão, e uma terra que era informe e vazia; trata-se do campo no qual Deus ornará de beleza a sua criação, que será coroada por aquelas criaturas que guardarão sua própria imagem e semelhança, os seres humanos, como uma mãe grávida carinhosa arruma e ornamenta o quarto do seu filho que nascerá em breve.

E assim, tendo preestabelecido duas naturezas criadas, o céu e a terra, exprimiu a informidade do céu dizendo: as trevas cobriam a face do abismo, incluindo no céu também o ar; e a informidade da terra, dizendo: A terra estava informe e vazia.

Eis, portanto, que, na sua resposta, Tomás avaliou a questão tanto do ponto de vista da ciência do seu tempo, quanto da filosofia que subjaz ao seu pensamento, quanto, por fim, da crítica bíblica, dando-nos bons critérios para avaliar a questão proposta. Munido de tais critérios, ele revisitará os argumentos objetores e os dois argumentos sed contra iniciais, que é o que examinaremos no próximo texto.