Esta questão deve ser vista pelo que ela é, uma especulação teológica com base na melhor ciência de seu tempo. Hoje, parece-nos uma especulação desnecessária sobre matéria que deveria ser científica, não filosófica nem teológica. Mas a intenção de Tomás, aqui, não é resolver problemas de fato, ou seja, questões científicas; trata-se, apenas, de verificar se o relato revelado da criação implica conceber que Deus obrigatoriamente agiu deste ou daquele jeito, ou se ele pode dar conta de mais de uma hipótese científica sem abalar-se. É, portanto, um problema que ainda nos interessa muito. O relato bíblico ficaria abalado se a ciência descobrisse que houve primeiro a aparição da matéria informe, e depois as coisas tivessem sido paulatinamente formadas? É preciso ler o Gênesis como determinando que todas as coisas saíram prontas das mãos de Deus em seis dias? Atualíssima questão, portanto, mesmo porque a ciência tende, hoje, a imaginar que o universo foi sendo organizado, foi formado paulatinamente, progressivamente, através da formação das coisas pela matéria originalmente informe. Mas há, do lado de alguns teólogos, a tendência a achar que o único relato criacionista compatível com a Bíblia seria aquele que determinasse que as coisas saíram todas prontinhas das mãos de Deus no primeiro instante de sua criação. No fim, acharemos que, neste assunto, Tomás evita dar uma palavra muito definitiva. Acolhe opiniões divergentes e percebe os limites do seu pensamento, que deveria manter-se aberto a eventuais novas descobertas científicas. Muita sabedoria da parte dele, portanto.

Postas estas palavras introdutórias, vamos à questão. Esta é, exatamente, a hipótese controvertida, colocada para provocar o debate: parece que houve, na criação, um primeiro momento em que surgiu a matéria informe, para só depois haver a formação das próprias coisas tais como as conhecemos hoje.

Curiosamente, este artigo tem três argumentos objetores e dois argumentos sed contra, isto é, tem uma estrutura um pouco mais complexa do que a maioria dos outros artigos da Suma. Além disso, Tomás enfrentará os dois artigos sed contra, o que também não é muito comum, já que raramente ele volta a examinar este tipo de argumento, nos outros artigos da Suma.

O primeiro argumento objetor lembra que o próprio relato bíblico da Criação, em Gn 1, 2, diz que “a terra estava sem forma e vazia”; ou, segundo outras traduções, “descomposta e deserta”. Isto, segundo o argumento, é interpretado por Agostinho no sentido de que a matéria existiu primeiro como algo sem forma e indistinto, antes que Deus efetivamente especificasse as coisas, conclui.
O segundo argumento inicia com a afirmação de que podemos esperar analogia entre a forma com que a natureza opera, por um lado, e a forma com que Deus opera, por outro; de fato, a natureza, diz, é causa segunda, da qual Deus é causa primeira, e é de se esperar, portanto, paralelismo entre ambos. Nas coisas da natureza, diz o argumento, sempre verificamos que a matéria informe precede a formação da coisa, na geração de coisas novas; é só verificar, por exemplo, o processo de gestação. Assim, o argumento conclui que também na criação a matéria informe precedeu a existência das coisas concretas e especificadas.

O terceiro argumento objetor lembra que a matéria e a forma constituem a própria substância das coisas corporais; estas são constituídas de dois elementos, que são justamente a matéria e a forma. Ora, prossegue o argumento, se é assim, então temos que admitir que a matéria é mais íntima à coisa, ou seja, integra mais sua substância do que os acidentes, como a cor, o tamanho, a posição e assim por diante. Mas Deus pode fazer com que algo exiba acidentes que não correspondem à substância, como no caso da eucaristia, em que os acidentes do pão e do vinho existem e subsistem, mesmo quando as próprias substâncias, o pão e o vinho, já não existem mais, por terem sido transubstanciadas no corpo e sangue de Jesus. Ora, se os acidentes podem existir independentemente da substância, conclui o argumento, nada impediria que a matéria informe viesse a existir, na criação, antes das respectivas formas.

O primeiro argumento sed contra, que se opõe à hipótese objetora inicial, afirma, logo de início, que um efeito imperfeito provaria que a respectiva causa também é imperfeita. Ora, Deus é uma causa perfeita, diz o argumento, e as Escrituras asseguram que as suas obras também são sempre perfeitas (Dt 32, 4). Portanto, ele não pode ter criado um universo que não fosse pleno desde o início, quer dizer, que começasse a existir apenas com matéria informe, e não com as próprias coisas plenas e perfeitas. Logo, conclui o argumento, nunca houve um tempo em que houvesse apenas a matéria informe, no início da criação.

O segundo argumento contrário recorda que, segundo o relato de criação de Gênesis 1, as criaturas corporais foram criadas como coisas distintas. Mas, se houve algum momento de informidade da matéria, isto significa que as próprias criaturas corporais existiram indistintamente, antes de serem separadas por Deus para uma existência distinta, o que implicaria admitir algum tipo de caos inicial, que não parece harmonizar-se com o relato de criação bíblico. E assim o argumento conclui que não se poderia admitir um período de informidade material no início da criação.

No próximo texto veremos a resposta sintetizadora de Tomás.