Estamos tratando aqui da possibilidade de engano na mente dos anjos. Será que eles podem equivocar-se, quanto àquilo que conhecem? Anjos podem errar? Podem ter conhecimentos equivocados sobre alguma coisa, ou mesmo ignorar aspectos substanciais daquilo que conhecem?

De certo modo, já vimos que, no campo do conhecimento natural, os anjos podem ignorar aquilo que está dentro do coração humano, a menos que o próprio sujeito permita que ele tome conhecimento. Mas isto não implica dizer que os anjos tenham um falso conhecimento; o coração humano, os segredos mais íntimos da alma, pertencem apenas ao próprio indivíduo e a Deus. E a quem o indivíduo desejar revelar. Isto envolve qualquer ser pessoal, seja ele humano, anjo ou mesmo as Pessoas divinas: ser pessoa é ser, de certo modo, misterioso ao conhecimento alheio. Aliás, vimos, também, que, embora sejam capazes de extrair imediatamente todas as consequências daquilo que sabem, num só e mesmo ato de cognição, eles não são capazes de antever ou prever o futuro, que ignoram em sua concretude fática. Vale aqui o velho provérbio: o futuro a Deus pertence.

O que se trata neste artigo é outra coisa: trata-se de saber se os anjos podem enganar-se, podem julgar mal, podem ter um conhecimento falso sobre alguma coisa. E a hipótese controvertida, para provocar o debate, é que os anjos podem, sim, conhecer falsamente alguma coisa, ou seja, eles podem enganar-se em seus conhecimentos.

São três os argumentos no sentido desta hipótese.

O primeiro argumento lembra que a perversão envolve a falsidade e o equívoco. Ora, diz o argumento, o Pseudo-Dionísio diz que os demônios têm pensamentos perversos, ou seja, a malícia perverte a sua mente. Demônios são substancialmente anjos. Logo, anjos são capazes de falsidade em sua mente.

O segundo argumento alega que a ignorância leva ao engano e ao erro no pensamento. Ora, diz o argumento, os anjos podem ignorar algum fato ou aspecto da realidade. Logo, diz o argumento, seu intelecto pode enganar-se.

O terceiro argumento ainda volta à questão dos demônios. Aqueles que se afastam da verdade da sabedoria, rejeitando-na, tem a razão depravada e, portanto, estão cheios de erro e engano no intelecto, diz o Pseudo-Dionísio, com relação aos demônios. Ora, os demônios são anjos. Logo, conclui o argumento, pode haver engano no intelecto dos anjos.

O argumento sed contra cita Aristóteles, que diz expressamente que o intelecto é sempre verdadeiro. Ou seja, só se pode falar de intelecção quando a verdade se encontra no intelecto. No caso dos seres humanos, este processo de alcançar a verdade, ou seja, de inteligir, é longo, e passa pela apreensão, pelo juízo e pelo raciocínio. Mas os anjos inteligem tudo por sua própria natureza, criada já com as species de tudo o que pode ser por eles inteligido. Ora, se os anjos não passam por algum processo de aprendizagem (que pode levar ao equívoco, ao engano, ao erro, ou seja, à falsidade na busca da verdade sobre as coisas naturais), isto significa que seu intelecto não se engana; não há nem pode haver falsidade na mente do anjo, com relação àquilo que ele conhece.

Em sua resposta sintetizadora, São Tomás resgata o debate feito no artigo anterior: o anjo não chega à verdade por meio do julgamento, do caminho de “compor e dividir”, ou seja, às apalpadelas, como nós. Ele intelige a quididade, ou seja, conhece de logo e completamente o objeto do seu conhecimento. Ora, como nos lembra Aristóteles, o intelecto que intelige a quididade não erra, é sempre verdadeiro, como os sentidos o são para o seu sensível próprio. Assim, quando vemos as cores (se nossos olhos são saudáveis, é claro), vemos de fato as cores. Não enxergamos cheiros ou sons. Assim, quando inteligimos quididades, isto é, percebemos que há algo diante de nós como objeto de conhecimento, inteligimos de fato aquilo que examinamos, e não outra coisa.

O que isto significa, com relação à intelecção dos anjos – e à nossa? Veremos isto no próximo texto.