Como vimos na introdução, talvez seja difícil para nós, hoje, com a nossa mentalidade individualista, nominalista, atomista, imaginar relações reais; imaginá-las como existentes nas próprias coisas, independentemente de uma mente humana que as conheça. Tendemos a imaginar que vivemos num mundo de coisas estanques, isoladas entre si, e que somos nós que projetamos relações nas coisas. Mas não é assim. Quando, por exemplo, um animal nasce de outro animal, a relação de geração, neles, efetivamente existe, independentemente de nós os conhecermos. Mas não existe como uma coisa, senão com um acidente, u seja, como algo cuja existência depende da existência das substâncias envolvidas.

É claro que, para que seja assim, é preciso que admitamos que há uma mente – a mente divina – que conhece tudo e dá sentido a tudo independentemente da nossa. Nós perdemos esta perspectiva na contemporaneidade; imaginamos que não há sentido intrínseco no mundo fora daquele que a mente humana lhe pode dar. Daí a importância deste artigo; se em Deus há relações reais, vale dizer, relações que não são apenas lógicas, apenas “modos de conhecer” as coisas que são isoladas entre si, a categoria da relação adquire uma densidade ontológica, uma concretude substancial divina, e nos força a conceber a relação como um atributo estrutural, não só de Deus, mas da própria criação. O ser e o relacionar-se adquirem o mesmo estatuto de estrutura e concretude. A consequência disto para a nossa compreensão de realidade, e mesmo para a autocompreensão humana, é enorme. Seria trocar o “penso, logo sou” de individualista e auto-justificante de Descartes, por algo como “sou, logo me relaciono”.

Eis, pois, a dramaticidade da pergunta colocada aqui: “parece que em Deus não há relações reais, mas apenas relações de razão” (relações de razão ou lógicas seriam apenas modos de expressar uma unidade que é absoluta em si mesma mas pode ser expressa, por nós, como relativa, em razão de sua fenomenologia, quer dizer, do modo com que Deus aparece para nós – aquilo que São Tomás chama de “a heresia sabeliana”). A hipótese, pois, quer negar qualquer relatividade em Deus.

São quatro argumentos objetores, apresentados agora. O primeiro argumento objetor cita Boécio, na sua obra “De Trinitate”, na qual afirma que, quando se fala de Deus, o único predicado que lhe pode ser atribuído é o de “substância”. A categoria da “relação” é uma categoria acidental, e nenhum predicado acidental poderia ser atribuído realmente a Deus, diz a citação. E o argumento prossegue, concluindo que, portanto, quando falamos de “relação”, em Deus, não estamos atribuindo a ele algo que existe na realidade mesma da sua concretude existencial, mas apenas um atributo de razão, um modo de falar. Então, conclui o argumento, não há relações reais em Deus.

O segundo argumento também cita Boécio, que, na mesma obra nos afirma que a relação entre o Pai e o Filho, e entre estes e o espírito Santo, é como uma relação entre o mesmo e o mesmo. Ora, prossegue o argumento, uma relação entre o mesmo e o mesmo não é uma relação real, mas apenas uma relação de razão (imaginemos que eu diga que “esta casa é branca”; não há uma coisa que seja a casa e outra coisa que seja a “branquidão”, mas uma mera relação de razão entre o mesmo e o mesmo, que minha inteligência constrói para descrever a casa). Esta relação não tem, portanto, dois extremos, não vincula duas ou mais coisas, mas a mesma coisa com algum aspecto dela mesma. Se é assim em Deus, diz o argumento, as relações que afirmamos dele não podem ser relações reais, conclui, mas apenas relações de razão.

O terceiro argumento parte da afirmação de que a relação de paternidade é sempre uma relação de princípio, quer dizer, na qual uma coisa é princípio da outra. Mas o argumento lembra que, pela criação, Deus é princípio das criaturas; no entanto, a relação de Deus com as criaturas não é uma relação real, diz o argumento, senão uma relação de razão: se excluímos as criaturas, Deus continua a ser completo, perfeito e suficiente, logo a relação entre Deus e a s criaturas, mesmo sendo uma relação de princípio, não vincula Deus realmente, e portanto não pode ser uma relação real, diz o argumento. E conclui que não há relações reais em Deus.

O quarto argumento lembra que a geração do verbo é analógica à relação de aprendizagem, em nós; Deus, ao se conhecer, gera o Verbo, como nós, ao conhecermos alguma coisa, geramos em nós um verbo mental que é a assimilação daquela coisa em nossa inteligência. Ora, o argumento prossegue dizendo que a relação que temos com os verbos mentais que formamos intelectualmente é uma relação de razão, porque não há distinção real entre nós e as operações da nossa mente. Assim, o argumento conclui que as relações que se afirmam existir em Deus, segundo a geração do verbo, seriam também apenas relações de razão, e não relações reais.

Como argumento sed contra, São Tomás nos lembra que Jesus se revela a nós realmente como Filho, e nos revela seu divino Pai como um verdadeiro Pai. Ora, somente e pode falar de filho quando há uma filiação real, e somente se pode falar de pai ali onde existe real paternidade. Se não há relação real entre os dois, mas apenas um modo de exprimir o fenômeno de que o mesmo Deus se mostre a nós de modos diferentes em situações diferentes, que expressamos como relação apenas por um modo de falar resultante da nossa própria razão, cairíamos de novo num modalismo, que é a heresia sabeliana.

Postos os argumentos num sentido e noutro, examinaremos no próximo texto a resposta de São Tomás.