No artigo anterior, debatemos sobre a corporeidade dos anjos, e vimos que os anjos são incorpóreos. Mas São Tomás acha necessário prosseguir na discussão, e debaterá se, além de incorpóreos, eles também seriam imateriais.

Esta diferença é muito sutil e muito interessante. Tomemos o exemplo do ar. Ele é incorpóreo, mas não é imaterial. Não é à toa que na linguagem bíblica, e mesmo na língua grega clássica, a palavra para sopro (ruah, pneuma) designa também o espírito. E o próprio Jesus, ao falar do Espírito Santo no capítulo 3 do Evangelho de João, menciona um “vento que sopra onde quer” (Jo 3, 8). Nçao parece desnecessário discutir, então, se além de incorpóreo, o anjo também é imaterial. Poderíamos imaginá-lo como composto de uma matéria sutil, fluida, imperceptível aos sentidos, mas ainda material. Aliás, para nós, que somos seres sensíveis, cuja inteligência depende dos sentidos para funcionar, é muito fácil imaginá-los assim. Mesmo porque o próprio ato de imaginar (gerar imagens mentais) está estreitamente relacionado à materialidade daquilo que imaginamos. Não é possível para um ser humano imaginar uma inteligência imaterial, como não é possível imaginar algo imaterial, inteligente ou não, sem associar uma imagem qualquer a ele. Daí a necessidade de estabelecer claramente a imaterialidade dos anjos, após ter estabelecido sua incorporeidade.

A hipótese controvertida assumida aqui, para gerar o debate, é a de que os anjos, embora incorpóreos, não seriam imateriais. De fato, diz a hipótese, todas as criaturas são, de algum modo, compostas, porque só Deus é simples, e os anjos não são deuses. Assim, a hipótese controvertida quer provar que os anjos, sendo criaturas, embora incorpóreas, são necessariamente compostos de matéria e forma. São quatro os argumentos no sentido desta hipótese inicial.

O primeiro argumento usa a terminologia filosófica para afirmar que tudo aquilo que pode ser classificado em algum gênero é necessariamente um ente composto. De fato, lembramos que Deus não se enquadra em nenhum gênero, porque é simples. Mas os seres compostos, diz o argumento, estão sempre num gênero e numa espécie. Ora, diz o argumento, a classificação no gênero decorre da matéria, e a classificação na espécie, da forma. Um exemplo pode deixar mais claro: os seres humanos, olhados apenas do ponto de vista material, pertencem ao gênero animal: são corpos animais. Mas são racionais, esta é a diferença que faz com que eles estejam numa espécie diversa daquela dos outros animais. Mas esta diferença não é material: não há como pesar ou medir um pensamento. Ela é formal, portanto. Assim, no caso dos anjos, diz o argumento, eles estão no gênero das substâncias, porque são entes criados. Logo, se podemos classificá-los num gênero, isto significa, conclui, que existe alguma matéria neles. E que há forma, já sabemos, visto que eles são indivíduos com inteligência e vontade. Logo, o argumento conclui que os anjos têm matéria e forma.

O segundo argumento diz que, se identificamos as propriedades da matéria em algum ser, então temos que admitir que a própria matéria tem que estar presente nele, para que ele tenha tais propriedades. Ora, Boécio identifica duas propriedades da matéria que ele chama de 1) “capacidade de receber” e 2) “capacidade de suportar” (ou “capacidade de subsistir”). A capacidade de receber, que a matéria tem, com relação à forma, é fácil de exemplificar com uma folha de papel: a ideia que está em nossa cabeça é imaterial, mas para registrá-la no mundo real eu preciso de algum meio receptor, normalmente uma folha de papel na qual eu vou escrevê-la ou desenhá-la. Aí está exemplificada a capacidade que tem a matéria de receber as ideias. Quanto à capacidade de sustentar, ou substanciar, podemos pensar num pedaço de madeira sendo carbonizado: após a queima, já não há mais madeira, as propriedades da madeira foram perdidas, a forma de madeira foi perdida, e ali há apenas carvão. Mas a mesma porção de matéria que antes constituía o cepo de madeira agora constitui o carvão; vale dizer, foi a matéria que subsistiu, que suportou a transformação, de modo a podermos afirmar que foi aquela madeira que deu origem a este carvão, embora sejam substâncias diferentes. Com vistas a estas duas propriedades, o filósofo cristão Boécio afirmava que, sem matéria, as ideias são simples formas, sem existência real. É preciso que haja uma matéria para receber a forma, e para que ela subsista diante das transformações que sofrerá, para que haja uma criatura. Ora, conclui o argumento, os anjos são entes, criaturas, logo devem ter matéria e forma.

O terceiro argumento lembra que a matéria responde por aquilo que é potencialidade, no ente criatural; ou seja, aquilo que é promessa de ser, potência, capacidade de desenvolvimento, mas ainda não está pleno. Enquanto a forma responde por aquilo que é ato, ou seja, aspectos que já estão perfeitos, consumados, existentes. Logo, se os anjos são só forma, sem matéria, eles são só perfeição, sem potenciais. Mas os anjos, como criaturas que são, não podem ser descritos como pura perfeição; só Deus é puro ato, perfeição total sem nenhuma capacidade de melhorar. Logo, os anjos não podem ser puro ato, ou seja, pura forma. Eles devem ter algum tipo de matéria em sua composição, conclui o argumento.

Por fim, o quarto argumento afirma que a forma é indefinida, ou seja, não concreta, não delimitada; somente a matéria delimita e define a forma. Por exemplo, se eu digo: “eu gostaria de comprar um carro”, mas não aponto algum carro material, concreto, fabricado de metal e borracha, esta compra nunca ocorrerá. Não se pode comprar um carro abstrato, somente um carro concreto, material, existente. Ninguém dirige um projeto de carro, mormente quando ele ainda não saiu da concepção do engenheiro, enquanto ele não se constitui num carro efetivamente fabricado, material. Assim, uma vez que os anjos são criaturas, entes determinados, existentes, concretos, distintos das demais criaturas, com os quais se pode efetivamente entrar em relação, temos que admitir, conclui o argumento, que os anjos têm que ter matéria, além da forma que os constitui.

Por fim, concluindo as balizas do debate, o argumento sed contra cita o Pseudo-Dionísio, que explica que aquelas primeiras criaturas, que são os anjos, foram compreendidas como incorpóreas, ou seja, imateriais.

Colocado o debate, São Tomás passará a dar sua resposta sintetizadora. Que veremos no próximo texto.